A evolução do piano
19.out 2022

Ana Valentino

 

O piano é um instrumento musical de cordas percussivas, acionadas por um conjunto de teclas que operam um sistema de martelos. Para que o som seja produzido, cada tecla, ao ser tocada, aciona um único martelo, que percute as cordas esticadas e presas em uma estrutura feita de madeira ou metal. A vibração das cordas é interrompida por amortecedores quando as teclas são liberadas e pode ser regulada em comprimento de onda e volume por dois ou três pedais. A amplificação do som fica por conta da grande caixa de ressonância formada pela estrutura que compõe o móvel do instrumento.

A “alma” da sonoridade está na tábua harmônica, uma das partes acústicas fundamentais do piano, que é responsável pela transferência da energia vibratória das cordas para o ar, formando ondas sonoras de amplitude e potência bem maiores do que as que poderiam ser geradas somente pelas cordas. A qualidade do timbre de um piano é definida pela espécie e espessura da madeira utilizada na fabricação da tábua harmônica, e por sua perfeita fixação. Seu estado de conservação é outro item importante, visto que qualquer dano à sua estrutura irá incorrer na perda de qualidade da sua sonoridade.

A origem do instrumento remonta à Florença do final do século XVII, quando o primeiro piano foi criado pelo construtor de cravos italiano Bartolomeo Cristofori (1655-1731), que trabalhava na corte dos Médici, dinastia política que dominou a região por quase 300 anos, além de ter exercido forte influência sobre a Itália Renascentista no campo das artes e da arquitetura. Cristofori sentia-se insatisfeito com a ausência de controle sobre a intensidade do som, que era própria do cravo, o que o motivou a desenvolver um outro mecanismo de percussão utilizando martelos, a fim de permitir esse controle. Dessa forma, em torno do ano de 1700, concebeu o precursor do piano moderno, o pianoforte. O volume de um pianoforte era bem maior que o de um cravo, mas menor quando comparado a um piano de cauda moderno, sendo o pianoforte adequado para solos ou acompanhamento de voz. O instrumento possuía 54 teclas; atualmente, um piano possui em torno de 88 teclas. Após a invenção, Cristofori continuou a aperfeiçoar o mecanismo de ação dos martelos e construiu outros exemplares do instrumento. Três destes permaneceram até os dias de hoje, e estão sob a guarda de museus: o mais antigo, datado de 1720 encontra-se no Metropolitan Museum of Art, em Nova York; outro deles, fabricado no ano de 1722, está no Museo degli Strumenti Musicali, em Roma; e o último, do ano de 1726, quando o construtor tinha 71 anos de idade, pode ser visto no Museum für Musikinstrumente da Universidade de Leipzig, na Alemanha, que faz parte do complexo museal Grassi Museum.

Dois documentos testemunham a invenção do instrumento: um deles é uma descrição no inventário do ano de 1700 da coleção de instrumentos musicais do Grão-Príncipe Ferdinando de Médici, sob a guarda do Arquivo do Estado de Florença, onde foi registrado como Arpicimbalo di Bartolomeo Cristofori; o outro é um artigo publicado por um dos editores do Giornale de’letterati d’Italia, Scipione Maffei, no ano de 1711, onde foi nomeado como gravecembalo col piano e forte, que fazia alusão a um grande cravo com intensidade de sons suaves e altos. Este nome foi substituído ao longo do tempo, primeiramente por “fortepiano” e depois por “pianoforte”.

 

Um dos exemplares remanescentes do pianoforte de Cristofori, datado de 1722.
Acervo do Museo degli Strumenti Musicali, Roma.
Fonte: https://www.animus-cristofori.com/files/2_kerstin_schwarz.pdf

 

No ano de 1730, Gottfried Silbermann (1683-1753), um fabricante alemão de instrumentos de teclado como clavicórdios e cravos – inspirado pelo modelo de Cristofori – construiu o primeiro piano alemão. Apesar do modelo de Silbermann se assemelhar muito ao de Cristofori, ele apresenta um importante diferencial: o acréscimo de um elemento a qual lhe é atribuída a invenção, que é o pedal de sustentação, responsável por erguer todos os abafadores do instrumento, o que permite que as cordas fiquem livres para vibrar simultaneamente, independente das teclas pressionadas. Com relação ao instrumento criado por Silbermann, nomeado por ele de “pianoforte”, o musicólogo alemão Johann Friedrich Agricola (1720-1774) escreveu em sua publicação intitulada Musica Mechanica Organoedi, que este piano foi criticado pelo compositor Johann Sebastian Bach (1685-1750) devido ao seu toque pesado e som fraco no registro agudo, o que fez com que Silbermann precisasse trabalhar por alguns anos no aprimoramento do mecanismo de ação dos martelos a fim de finalmente obter a aprovação de Bach. As melhorias feitas alavancaram as vendas dos pianofortes; Frederico, O Grande (1712-1786), rei da Prússia, adquiriu alguns exemplares, considerando a qualidade superior dos instrumentos produzidos pelo construtor.

Por volta do final dos anos 1760, Johannes Zumpe, antigo aprendiz de Silbermann que trabalhava e vivia em Londres, percebeu o potencial da classe média emergente e decidiu começar a fabricar e comercializar pianos para esse nicho de mercado. Para tanto, elaborou instrumentos com o mecanismo de ação simplificado e a forma retangular do clavicórdio – que são conhecidos como pianos de mesa –, e obteve um grande sucesso comercial. Alguns anos mais tarde, em torno de 1780, John Broadwood (1732-1812) implementou melhorias estruturais no piano de mesa, dentre elas a inclusão de um amortecedor de latão que foi um refinamento adicional ao mecanismo de ação, desenvolvendo o que foi chamado de “sistema inglês”. A partir dessa mecânica, um ano depois, o construtor de origem franco-germânica, Sébastien Érard (1752-1831) produziu o primeiro modelo francês.

 

Piano de mesa Zumpe & Buntebart, 1773.
Acervo do Rijksmuseum, Amsterdam.
Fonte: https://www.rijksmuseum.nl/en/collection/BK-KOG-733

 

Entre os períodos descritos acima, em 1770, outro construtor alemão, Johann Andreas Stein (1728-1792), empreendeu a produção de mais de 700 pianos que se tornaram modelos amplamente copiados, em virtude da invenção do mecanismo de escape, chamado também de “ação vienense”. Este mecanismo, fruto de uma simplificação do tipo de ação desenvolvida por Bartolomeo Cristofori, permite uma resposta rápida e a produção de um som um pouco mais alto do que nos modelos de pianos anteriores, ao maximizar a alavancagem que o músico pode exercer sobre o martelo que aciona a corda. A característica distintiva deste sistema consiste em um conjunto de alavancas de escape individuais com mola, uma para cada tecla, que ao serem tocadas inclinam os martelos em direção às cordas correspondentes e permitem que estes retornem imediatamente à posição inicial, enquanto um complexo de amortecedores forrados com feltro interrompem o som produzido por esta ação. Com essa inovação, Johann Stein conseguiu como resultado uma diferenciação significativa em relação à invenção de Cristofori, alcançando uma qualidade sonora que encantou Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), que além de recomendar fortemente os pianos de Stein usou-os por diversas vezes, tanto em ocasiões particulares quanto em concertos públicos.

Em 1795, o construtor inglês William Stodart (1792-1838) projetou o primeiro piano vertical, também chamado de “piano armário”. Sua vantagem em relação ao piano de cauda estava em seu tamanho, que se acomodava melhor nas residências, compondo assim o mobiliário das casas, outro papel proeminente do piano em sua trajetória social. Os desafios técnicos em deslocar de forma radical as cordas, martelos e tampo harmônico foram consideráveis, porém foram vencidos com a evolução técnica na fabricação deste tipo de piano, que conquistou um espaço importante apesar de raramente se igualar ao piano de cauda em qualidade, versatilidade e ressonância.

 

Piano vertical William Stodart, datado de 1801.
Acervo do Metropolitan Museum of Art, Nova York.
Fonte: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/504677

 

Em torno de 1821, um próximo passo foi dado na direção da evolução do piano; Sébastien Érard, que em 1781 havia produzido o primeiro piano de mesa francês, inventou o mecanismo de ação chamado de “duplo escape”, que combina um golpe poderoso do martelo com um toque flexível leve, o que permite que o instrumentista acione novamente uma mesma tecla em uma velocidade superior à do mecanismo de ação vienense, proporcionando a repetição rápida de uma nota sem que seja necessário aguardar a finalização do movimento completo de retorno do mecanismo à posição inicial; para tanto, foi feito o acréscimo de mais uma mola, que faz com que o martelo retorne ao seu ponto de partida, porém parando antes, na metade do caminho, o que o deixa mais próximo da corda no ato da repetição do toque. Pode-se dizer que os pianos Érard com o novo mecanismo serviram de base para a revolução técnico-pianística moderna realizada pelo compositor e pianista austríaco Franz Liszt (1811-1886) no universo musical, que tinha estes instrumentos como seus favoritos.

 

Mecanismo de ação “duplo escape”, criado por Sébastien Érard.
Fonte:https://www.worldpianonews.com/historical/anniversary/sebastien-erard-double-escapement-action/

 

Veja o funcionamento da ação do piano:

 

A segunda década do século XIX trouxe o que viria a ser um componente dos estágios finais da evolução do piano: a armação metálica inteiriça, necessária para o suporte da tensão de todo o mecanismo de ação do instrumento. Como representante importante está a patente do estadunidense Alpheus Babcock (1785-1842), datada de 1825, a primeira feita a partir de um molde único, do qual derivam todos os modelos subsequentes desenvolvidos em ferro fundido. Porém, o marco significativo na evolução do instrumento é creditado a Jonas Chickering (1798-1853), construtor de mesma nacionalidade que Babcock, representado por sua armação de molde único para piano de cauda, com criação datada de 1843.

Babcock também foi responsável pela invenção do sistema chamado de “cordas cruzadas”, em 1830, que levou ao que é considerado o ápice da evolução do piano, mas que, no entanto, não foi largamente adotado até 1855, quando a fábrica nova iorquina Steinway & Sons concebeu a sua forma definitiva. Este sistema consiste no arranjo das cordas mais agudas em forma de leque, dispostas sobre a parte maior do tampo harmônico, com as cordas graves cruzando-as em um nível mais alto. No período intermediário entre a invenção e a aplicação efetiva das cordas cruzadas surgiu a criação do pedal sostenuto, responsável por sustentar certas notas enquanto os abafadores de outras continuam a funcionar. O crédito desta invenção é atribuído aos irmãos Boisselot, fabricantes de piano de Marselha, no sul da França, com patente registrada entre 1843 e 1844.

 

Grand Piano Steinway & Sons, 1868.
Acervo do Acervo do Metropolitan Museum of Art, Nova York.
Fonte: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/503267

 

As cordas cruzadas em um piano Steinway & Sons, datado de 1926.
Fonte:https://www.chuppspianos.com/pianos/steinway/steinway-model-m/1926-steinway-model-m-grand-piano-ebony-restored/

 

Após a criação das cordas cruzadas e do pedal sostenuto ocorreram numerosas inovações, porém sem grande relevância. Em função disso, é possível afirmar que o piano estava completamente desenvolvido em sua essência, admitindo incrementos de ordem mecânica e estrutural ao longo dos anos até os dias de hoje, que colaboraram para uma melhor performance dos amantes deste instrumento de importância fundamental para a história da música no mundo.

 

Referências

 

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