O ato de classificar é inerente ao conhecimento humano. Ao passo que estruturas sociais e culturais de um grupo se tornam mais complexas, também o fazem as classificações e catalogações do mundo à sua volta como tentativa de dar ordem ao caos. Com isso, as mudanças sociais e culturais que ocorreram ao longo do tempo geraram a necessidade de adequações, como no exemplo de alguns instrumentos sonoros, antes usados como – ou baseados em – ferramentas para a caça, que ganharam novas funções, nomes e categorias dentro de um contexto classificatório cultural e socialmente orientado.
Na verdade, o objetivo deste texto é expor um curto caminho dessas classificações de instrumentos musicais que de alguma forma levaram à formação, no século XIX, da Organologia. O mais antigo sistema de classificação que podemos relacionar é o chinês pa yin, descrito no Zholi (textos dos “rituais de Zhou”), datado do século III AEC (“Antes da Era Comum”, equivalente à “Antes de Cristo”) que define seus instrumentos a partir do material que os compõem: pedra, pele, metal, madeira, argila, bambu, cabaça, seda ou couro. Mais tarde, no século IV, na Índia, um tratado de dramaturgia escrito em sânscrito, o Natya Shastra os organiza em quatro classes: tatá, cordas; avanddha, instrumentos cobertos por membrana; sushira, sopros; ghana vadhaya, material sólido (KARTOMI, 1990 apud BALLESTÉ, ibd.). Na Europa, por alguns séculos, havia classificações objetivas, porém não sistemáticas, que dividiam os instrumentos musicais em cordas, sopro, percussão e diversos (VEGA, 1968). Entretanto, os primeiros esforços mais próximos do que viria a ser uma classificação sistematizada foram despendidos por Michael Praetorius que, entre 1618 e 1619, publica Syntagma Music no qual seu segundo tomo (Von den instrumenten ou Organographia, de 248 páginas) é dedicado aos instrumentos musicais. Nele, o autor propõe a divisão dos instrumentos em dois grandes grupos: os instrumentos de sopro e os de corda.
Alguns anos depois, em 1636, Marin Mersenne publica L’harmonie Universelle. Neste, o autor estava mais preocupado com questões relacionadas à acústica dos instrumentos musicais e os categoriza em famílias. A obra é dividida em sete livros: o primeiro é geral; o segundo, terceiro e quarto, reservados aos instrumentos de corda; o quinto, aos instrumentos de sopro; o sexto, aos órgãos; e o sétimo, aos instrumentos de percussão (HAYES, 1927 apud id. Ibd: 69). É considerado o primeiro tratado de acústica relacionado a instrumentos musicais.
Nesse período, com a crescente exploração de terras além-mar – herdadas das grandes navegações do século anterior – e conhecimento de outros modos de existência, interrogações sobre a natureza humana começam a efervescer na Europa. Antes, o nativo de outras terras era considerado “selvagem” e não havia muitos interesses a seu respeito. Porém, no final do século XVIII, com questões em torno de uma “ciência do homem” em voga, esse nativo passa a ser incorporado enquanto “primitivo” ao projeto problemático – e já cientificamente obsoleto – de uma humanidade positiva no qual a civilização europeia estaria no topo de uma espécie de linha evolutiva cultural. A partir daí, cria-se um ímpeto científico positivista de uma catalogação universal da cultura humana. Portanto, viajantes enviados por algum intelectual europeu, começam a recolher objetos e relatos de suas viagens a fim da criação de extensas monografias e os chamados “gabinetes de curiosidade” que, adiante, passariam a ser coleções mais organizadas e, mais tarde, dariam origem à Antropologia e aos museus modernos (LAPLANTINE, 1988). Essas movimentações, no século XIX, resultariam também na aparição de outras disciplinas das ciências humanas, entre elas, a Musicologia.
Com essas agitações e novas preocupações musicológicas e museológicas, um primeiro sistema de classificação institucional surge a partir de um trabalho feito sobre uma vasta coleção de instrumentos musicais indianos e europeus, proposto, em 1893, por Victor-Charles Mahillon no tomo I da segunda edição do catálogo do Museu do Conservatório de Bruxelas.
Seu pai foi construtor de instrumentos de sopro e professor em Bruxelas. Em sua adolescência, em 1874, publica Éléments d’Acoustique musicale et instrumentale e escreve que “o estudo em acústica é complemento indispensável para uma boa educação musical” (BALLESTÉ, ibd. & VEGA, ibd.& MAHILLON, 1874, p.1).
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